Parece uma epidemia. Por toda parte onde se escarafunche, jorram casos e mais casos de abuso sexual de jovens por padres católicos. A história começou a ganhar as manchetes dos jornais nas duas últimas décadas do século 20, quando pessoas que haviam sido vítimas de religiosos no Canadá, nos EUA e na Irlanda resolveram botar a boca no trombone.
De lá para cá, foi uma avalanche: histórias escabrosas emergiram de todos os cantos do mundo, da Nova Zelândia à Polônia passando por Argentina, Alemanha, Áustria (para ficar apenas na letra A). Até Arapiraca, no Piauí, acaba de entrar para o mapa da sagrada pedofilia.
Foi por essas e outras que, na sexta-feira passada, o papa Bento 16 enviou aos fiéis irlandeses uma carta episcopal em que pede desculpas por tudo de errado que aconteceu naquele país, um bastião do catolicismo na Europa, ao lado da Polônia e da pequena Malta.
Apesar de meu anticlericalismo, não acho que a culpa aqui seja da religião propriamente dita. Afinal, nenhum texto sagrado ou documento da igreja afirma e nem traz a menor sugestão de que manter uma relação homossexual com jovem sob sua tutela seja algo diferente de um pecado muito grave.
A forma de organização da Igreja Católica, entretanto, parece favorecer a ocorrência dos abusos, que, ao menos aparentemente, não acontecem na mesma escala em colégios e seminários protestantes, islâmicos ou judeus. E a especificidade do catolicismo nessa matéria é bem conhecida: o celibato dos padres. Não sou o primeiro e nem serei o último a correlacionar o veto ao casamento para sacerdotes à maior frequência de episódios de pedofilia. O sempre arguto teólogo católico Hans Küng publicou um interessante texto a respeito, que foi reproduzido no caderno Mais! da Folha desta semana.
Temos duas camadas de problemas para analisar: os abusos propriamente ditos e os esforços da alta hierarquia da igreja para acobertá-los. Comecemos pelo fim, isto é, pelas tentativas de bispos de encobrir os crimes de seus subordinados. Durante muitas décadas, para não dizer séculos, quando tomava conhecimento de casos de abuso, a cúpula da igreja invariavelmente decidia não denunciar o suspeito às autoridades civis. Costumava apenas transferi-lo para outra função, onde, por vezes, podia até mesmo seguir colecionando vítimas.
Num certo sentido, essa atitude é até mais grave que o próprio molestamento, pois a pessoa que abusa pode pelo menos descrever-se como vítima de uma doença psiquiátrica catalogada no CID. Já o acobertamento, este ainda não foi definido como patologia por nenhuma associação médica. Aqui, ao que parece, bispos eram mais leais à instituição da igreja do que a seus próprios fiéis. Talvez seja isso que a Santa Sé espera deles, mas não é certamente o que recomenda a virtude republicana.
Passemos agora ao molestamento em si. Como já disse, estamos aqui no limiar do patológico. E a Igreja Católica funciona como um ímã para pessoas com propensões pedofílicas, pois não apenas legitima e confere elevado status social à vida de solteiro como ainda oferece incontáveis oportunidades de interagir com jovens estando numa posição de poder. Outras profissões que atraem pedófilos, hebéfilos e efebófilos são, não por acaso, as de professor, psicólogo, pediatra, orientador pedagógico, instrutor esportivo, chefe de escoteiros etc.
O sacerdócio nas fileiras católicas, entretanto, pela dupla vantagem, parece ser a escolha de primeira linha. Apenas os EUA e a Irlanda fizeram investigações sistemáticas do problema em nível nacional. E os números, no caso norte-americano, consubstanciados no Relatório John Jay, de 2004, são de deixar os cabelos em pé.
Encomendado pela Conferência dos Bispos Católicos dos EUA (a CNBB deles) e realizado a partir de informações fornecidas pelas próprias dioceses e pelas vítimas, o estudo concluiu que, entre 1950 e 2002, 10.667 pessoas alegaram ter sido vítimas de abuso por parte de padres. Destes casos, 3.300 casos foram descartados porque o suposto molestador já havia morrido. Outro milhar foi desprezado devido a falta de provas. Para resumir o quadro, as dioceses encontraram elementos para consolidar 6.700 acusações de abuso contra 4.392 padres, isto é, contra cerca de 4% dos 109.694 membros do clero católico que atuaram durante o período coberto pelo trabalho. Evidentemente é uma minoria, mas uma minoria altamente significativa. Não conheço estatísticas para outras profissões, mas me surpreenderia muito se a proporção se aproximasse de algo como 1%. A prevalência da pedofilia na população geral não é conhecida e depende muito de como se define a parafilia, mas é um desvio que se conta em casos por milhar de habitantes, não por centena.
Das vítimas, 81% eram homens, a maioria dos quais já havia atingido a puberdade. Tecnicamente, portanto, hebefilia homossexual seria um termo mais adequado que pedofilia. Receio, porém, que o "framing" já esteja dado e não vá ser mudado.
Também acho difícil que uma eventual liberação do casamento para padres como defendida por Küng (em princípio, não se trata de de matéria dogmática, mas apenas de disciplina interna, estando, portanto, aberta a mudança) alteraria muito o quadro. A vida sacerdotal, em que o casamento jamais seria obrigatório, continuaria a ser uma opção atraente para todo gênero de pedófilo com inclinações religiosas.
A pergunta interessante aqui é: por que os católicos decidiram banir o casamento do sacerdócio? Há uma polêmica acre entre os próprios católicos. Küng, por exemplo, sustenta que a proscrição das núpcias para padres é relativamente recente, remontando à reforma gregoriana do século 11. A propaganda oficial, entretanto, faz com que a norma retroceda aos primeiros séculos do cristianismo.
Deixando essa controvérsia específica de lado, é seguro afirmar que os patriarcas da igreja tinham horror a sexo e que essa tendência se manifesta não apenas no celibato sacerdotal como também no próprio casamento entre leigos, ainda que com menor intensidade.
É claro que, oficialmente, a união matrimonial sempre foi considerada um sacramento. O próprio Jesus Cristo, quer a tradição, definiu o casamento indissolúvel entre o homem e a mulher como parte do plano de Deus.
Na prática, entretanto, a castidade quase sempre foi descrita como um estado preferível à vida conjugal. João Crisóstomo (c. 347 - c, 407), por exemplo, mandava que as pessoas se mirassem no exemplo de Cristo, "ele próprio a glória da virgindade". Patriarcas casados como Tertuliano (c. 160 - c. 225) e Gregório de Nissa (c. 335 -c. 394) não eram representantes muito entusiasmados da categoria. O primeiro afirmou que o casamento era "essencialmente fornicação" e o segundo disse que, se a mulher se mantivesse virgem, se livraria "do governo de um marido e dos grilhões das crianças".
Pragmático, Cipriano de Cartago (? - 258) reconhecia que Deus instruíra a humanidade a crescer e multiplicar-se, mas, uma vez que o mundo já se encontrava bastante povoado, não havia por que seguir com esse processo.
Assim, enquanto outros sacramentos como a eucaristia, o batismo e a confirmação ganharam desde o início liturgias formais sofisticadas, ninguém viu muita necessidade de ritualizar o casamento, que durante séculos e séculos dispensou até mesmo a presença de um padre. Para a união ser válida, bastava que os noivos declarassem um ao outro que se casavam ("verbum") e consumassem o ato fisicamente.
Essa situação perdurou até o século 16, quando, alarmada pela Reforma protestante --Lutero negava que o casamento fosse um sacramento-- e também pelo crescente número de uniões realizadas em privado, a Igreja Católica decidiu mudar as regras.
Após o Concílio de Trento, em 1563, ficou estabelecido que o casamento teria de ser oficializado por um padre e pelo menos duas testemunhas, regra válida até hoje.
Por que tanto horror ao sexo? Sinceramente, não sei. Tenho apenas algumas suposições. É claro que toda religião, como qualquer estrutura de poder, tenta dirigir e portanto controlar a vida de seus membros. Em geral, esse processo começa pelo corpo (a ponta final de todos os prazeres) e se dá através de normatizações e ritualizações. O catolicismo, porém, foi bem mais longe. Seus patriarcas flertaram com a própria eliminação do sexo (para eles, a fonte mesma da corrupção humana), ainda que jamais tenham apostado todas as fichas nessa vertente. É uma atitude que só se explica à luz de uma teleologia que tenha em mente o fim dos tempos. Trata-se, se quisermos e por paradoxal que parece, de uma filosofia com matizes niilistas, pelo menos no que diz respeito à vida neste mundo.
Também é notável uma inesperada semelhança com o marxismo: o caráter utópico. Católicos e comunistas comungam a crença (ou talvez devamos dizer esperança) de que, dadas as condições certas, é possível virar do avesso a natureza do homem.
PS - Desde que a Folha Online criou o espaço para comentários no pé das colunas, estou passando por mal educado, pois jamais respondo às observações ali colocadas. É que não tenho tempo de ficar conferindo o que acontece naquele espaço. Assim, peço a todos que queiram realmente falar comigo que se utilizem do e-mail.
Hélio Schwartsman, 44, é articulista. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.